Conheci um português diferente outro dia. Foi lá na PUC. Cheguei pensando que encontraria o português de sempre, conservador, carrancudo, autoritário, moralista. Senti até um pouco de medo quando entrei na sala de aula. Não tinha certeza se estava no lugar certo, se aquele português era pra mim. Mas, já que estava ali, não me restava alternativa a não ser descobrir.
Logo percebi que tudo não passava de pré-julgamento. Preconceito meu. Já na primeira aula, vi que o português que eu conheci ainda criança não era exatamente como eu achava que era. Ou como me fizeram pensar que era. Não deixaram que eu o enxergasse de verdade. Foi preciso me matricular num curso sequencial da Faculdade de Letras pra entender que o tal português não é, afinal, tão mau assim.
Foi o professor Gilberto Scarton quem me apresentou esse outro português. No início, eu nem podia acreditar em meus olhos e ouvidos. Não foi de imediato que consegui me despir de todos os preconceitos. Mas, aos poucos, compreendi. E vi que eu não precisava mais me sentir culpada por escrever certo de maneira intuitiva. Porque é isso o que eu faço, mas eu achava que era errado. Sempre exigente comigo mesma, não aceitava que pudesse escrever um bom texto mesmo sem saber suas regras.
Sim, eu sentia culpa por não lembrar nada de análise sintática. Por não saber dizer se um verbo estava no pretérito imperfeito do subjuntivo, por não poder explicar a regência nominal em uma frase. Do mesmo modo que não guardei na memória a fórmula de Báscara ou as leis de Newton, grande parte do meu aprendizado de gramática evaporou-se ao longo dos anos (e olhe que eu só tirava dez na escola). Mesmo assim, eu consigo escrever bons textos. Não me sinto capaz de resolver uma equação matemática, mas posso, sim, criar bons textos.
E o que isso quer dizer? Eis minha grande descoberta: ser um bom escritor independe do conhecimento das regras da gramática. Tudo aquilo que nos fazem decorar na escola tem pouquíssimo impacto na qualidade dos nossos textos. De nada adianta você conseguir dissecar uma frase sob todos os seus aspectos – morfológicos, sintáticos, semânticos e o diabo a quatro. Isso não significa que você seja capaz de produzir um bom texto. Talvez ele seja gramaticalmente correto, se analisado sob a ótica da gramática tradicional. Mas pode ser que você seja incapaz de concatenar uma frase à outra e um parágrafo ao outro com lógica e coesão. Porque, para isso, você precisa de bem mais do que ser fera em gramática.
Aprendi também que, para escrever bem, o importante mesmo é ler. Mario Quintana disse um dia: “Aprendi a escrever lendo, da mesma forma que se aprende a falar ouvindo.” E não é? Chega a ser óbvio, mas quem se dá conta? Nós primeiro aprendemos a falar, muito antes de sermos alfabetizados. Não é preciso conhecer as letras e saber como se formam as palavras para se comunicar oralmente (depois é que vem a gramática e encaixota tudo). Da mesma maneira, é a leitura que nos dá a base para a produção de bons textos. Lendo, absorvemos conhecimentos de todo tipo, que vão além do conteúdo em si: vocabulário, ortografia, estilo, e até gramática. E o mais incrível é que, muitas vezes, esse aprendizado não é proposital, não é exatamente um estudo. Ler é prazer, é lazer, e também é aprender.
Por fim, a verdadeira mudança de paradigma: esse outro português é muito democrático. Ele me fez entender que a língua é viva, mutável e flexível, e que aquilo que pensamos ser o certo não é, necessariamente, o único certo que há. Devo confessar que, inconscientemente, eu era uma preconceituosa linguística. Agora, sei que a língua tem modalidades distintas, que são usadas nos diferentes ambientes e situações. Pense bem: não dá pra encontrar um amigo na rua e perguntar “como tu estás?”, ou então “traga-me um chope” para o garçom do boteco. Todos nós dizemos “como é que tu tá?” (bem típico dos porto-alegrenses) e “me vê aí um chope” ou coisa parecida. Não é errado - desde que esteja adequado ao contexto. O segredo, como disse o professor Scarton, é ser um poliglota no interior da própria língua.
Diante de tantas coisas novas, a sensação é de liberdade. Esse português que eu conheci me livrou de amarras que a escola e a sociedade me colocaram. Não preciso mais me sentir culpada por não lembrar das regras que um dia eu soube de cor. Se o texto é bom, quem se importa? Se for preciso, as gramáticas, os dicionários e os revisores estão aí para nos socorrer. Eu quero agora é conhecer cada vez mais esse português boa pinta e boa praça, aberto às evoluções da língua, atento ao linguajar das ruas, das favelas e dos condomínios. Muito prazer, português.
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