20 de mai. de 2013

como destruir um editorial da revista Época

Não importa de que modo, num dia qualquer do mês de maio de 2013, o editorial da revista Época de 22 de outubro de 2012 veio parar nas minhas mãos - logo eu, que raramente perco meu tempo lendo revistas desse tipo. O fato é que o texto e eu tivemos um encontro marcante, para dizer o mínimo. E eu terminei a leitura achando que ele merecia uma resposta. Uma desconstrução. Uma destruição. 

Fiz como exercício, afinal, estou me preparando para ser professora de Português e Literatura, uma profissão em que é fundamental saber analisar um texto, entender como foi construído um discurso, identificar sua estrutura argumentativa, suas fragilidades. Devo dizer que foi divertido. E me ajudou a consolidar uma opinião que eu já tinha. Pena que o prezado editorialista, que eu não tenho ideia de quem seja, não vai ler. Mas, mesmo assim, tá valendo.

(O texto na íntegra, sem interrupções, está no final do post.)

A ETERNA FALÁCIA DAS COTAS (De falácia o editorialista entende. Vamos a elas.)
Editorial da Revista Época de 22 de outubro de 2012
O governo federal planeja anunciar, em novembro, a adoção de cotas para negros no funcionalismo público federal. Apenas para esclarecer, a lei ainda não foi aprovada. Mas isso não invalida a análise do texto. A cada concurso, um determinado número de vagas será reservado a candidatos de acordo com a cor de sua pele. Eles terão de fazer as provas como todos, mas suas chances serão diferentes. Trata-se de uma consequência do Estatuto da Igualdade Racial, aprovado em 2010, a primeira lei em mais de um século que distingue brasileiros por sua cor. Sim, porque antes dela havia outra, chamada escravidão, é sempre bom explicitar. Prossiga, senhor editorialista.
É inegável que negros sofrem preconceito no Brasil e, por isso, vivem em condições sociais mais desfavoráveis. Só por causa do preconceito? Não seria também porque a abolição da escravatura teve motivações, sobretudo, econômicas (pois manter escravos tornara-se mais caro do que explorar a mão de obra barata dos imigrantes que desembarcavam aos milhões no país)? Porque os escravos foram libertos sem nenhum tipo de apoio ou estrutura que os acolhesse? Não seria porque o Brasil nunca fez nada de concreto para realmente integrar essas pessoas à sociedade? Parece-me que preconceito, meu caro editorialista, não é o único problema aqui. Não há evidências, porém, de que a garantia de espaço no funcionalismo público ou nas universidades seja uma maneira eficaz de acabar com isso. Mesmo? Cadê os dados, cadê as estatísticas? Onde estão as evidências de que não há evidências? Que feio, senhor editorialista, apresentar uma ideia assim tão abstrata em um texto como este. Vamos ver o se isso se confirma no decorrer do texto. A política de cotas promete criar apenas mais uma distorção na já ineficiente máquina estatal brasileira. Se ela já é ineficiente com maioria branca, imagine se houver maior equilíbrio entre brancos e negros! O horror, o horror!
A justificativa recorrente de “movimentos sociais” desculpe a súbita interrupção, mas por que as aspas? Não é termo estrangeiro, ênfase não se justifica... Ah, entendi, é para ironizar! Sim, as aspas têm esse poder, e o autor bem o sabe. Aqui, as aspas estão dizendo que os movimentos sociais não são dignos de respeito. Afinal, eles não representam o prezado editorialista! Deveria haver movimentos sociais para defender a pobre classe média branca brasileira, tão sofrida, tadinha... para a adoção de políticas de cotas é a necessidade de corrigir a injustiça provocada pelo passado escravocrata brasileiro. É uma visão simplista de uma questão complexa. Aqui o leitor espera que o texto explique qual é a questão supercomplexa que esse povo dos movimentos sociais simplifica tanto. Vejamos se a expectativa se confirma. A genética mostra que o brasileiro é essencialmente mestiço. Jura? Acho que o pessoal ali de Morro Reuter não concorda... Brancos têm genes de negros e vice-versa. Acreditar que os negros brasileiros de hoje são descendentes dos escravos é falta de conhecimento. Hmmm, vamos tentar seguir o raciocínio do autor: se todo brasileiro é mestiço, então TODO BRASILEIRO É DESCENDENTE DE ESCRAVOS. Sendo assim, as cotas deveriam ser para TODOS OS BRASILEIROS. Mas cotas para todos seria o mesmo que para ninguém, então, o Brasil não precisa de cotas! Nossa, como eu nunca tinha pensado nisso antes! Agora falando sério: o dileto editorialista acha que as cotas não têm nada a ver com a cor da pele da pessoa, mas sim com a genética, é isso? O fato de muitos brasileiros de pele branca como a neve terem algum antepassado negro é suficiente para desancar a política de cotas? Meu senhor, veja bem: a pessoa branca não sofre preconceito racial, mesmo que seus genes guardem ascendência africana. É por isso que a teoria – esta sim, simplista – da genética mestiça do brasileiro não cola. Para terminar, vou só reproduzir o que ouvi certa vez de uma professora negra: vista a minha pele antes de falar qualquer coisa. Vista a minha pele. A união de cotas e emprego público formaliza apenas duas compulsões nacionais: por garantir um espaço econômico com menor concorrência e por pendurar-se no Estado. Afinal, aquele emprego público que paga bem e exige pouco nunca foi um sonho da classe média branca! (Ou então: Socorro! Vão pegar as nossas vagas!) A partir de 1988, a exigência de concursos consolidou um procedimento civilizado para selecionar funcionários. Apesar do ainda elevado número de cargos que podem ser preenchidos por critérios políticos, a maioria dos servidores é escolhida com base no mérito e na competência. Mas o mérito não pegou no Brasil. Mérito de quem, cara-pálida? De quem estudou nas melhores escolas, teve acesso a cursos preparatórios, pôde ficar em casa por meses ou anos só estudando porque tinha quem bancasse o cafezinho de cada dia? Ah tá, só pra saber. E outra coisa: se é concurso – tanto para universidades quanto para o serviço público –, o critério de seleção continua sendo o mérito, certo? Aliás, nos vestibulares, as notas dos cotistas estão cada vez mais se equiparando às da ampla concorrência. E aqueles que ingressam no curso superior pelo sistema de cotas são, sem dúvida, os melhores. Isso tudo, que eu saiba, ainda se chama mérito. Recomendo ao editorialista a leitura desta matéria da revista IstoÉ, e aproveite para monitorar a concorrência:  http://www.istoe.com.br/reportagens/288556_POR+QUE+AS+COTAS+RACIAIS+DERAM+CERTO+NO+BRASIL.
Desde o início das discussões sobre cotas, seus defensores buscavam espaço em universidades e empregos públicos. É curioso que se tente privilegiar o ingresso nos dois últimos passos do caminho profissional, em vez de tentar resolver as deficiências crônicas do ensino fundamental e médio - incapaz de garantir a igualdade de oportunidade tão preconizada pelos movimentos sociais. Olha, senhor editorialista, eu não discordo totalmente desta afirmação, mas tem um probleminha: uma coisa não exclui a outra, certo? Vamos esperar quanto tempo até as deficiências crônicas da escola serem sanadas? É lógico que a educação brasileira precisa melhorar, muito e urgentemente, mas enquanto isso não acontece, as políticas sociais – e aí se pode incluir também o Bolsa Família, as cotas para egressos de escolas públicas, o próprio ProUni e outras tantas – vão, gradativamente, reduzindo as desigualdades. Estou certa de que o senhor é muito bem-informado, acompanha os noticiários e sabe do que estou falando. Portanto, fazendo o favor, aceite que ações afirmativas sejam implantadas sem depender de soluções que levarão muito tempo para ocorrer. Pode não ser o ideal, mas é alguma coisa, o que sempre é melhor do que nada. Será que seus integrantes aceitariam trocar as cotas raciais em universidades ou no serviço público por cotas sociais para crianças pobres nas melhores escolas no ensino fundamental ou médio? Não é uma questão de trocar uma por outra, ler acima. Se isso ocorresse, as crianças teriam tempo de aprender e, mais tarde, por seu próprio esforço e mérito, disputar vestibulares e concursos públicos sem precisar da garantia de preferência pela cor da pele. O senhor certamente já ouviu falar que essas políticas não foram pensadas para serem eternas, não é? Chegará o momento em que elas poderão ser extintas – quando a discrepância, que hoje ainda é alarmante, for mínima ou nenhuma. Mas para isso acontecer, as cotas são necessárias, pois, sem elas, a discrepância não será reduzida. Enfim, o senhor entendeu. É uma gritante questão de lógica.
As cotas raciais foram adotadas nos Estados Unidos na década de 1970, como forma de corrigir distorções causadas por 80 anos de política segregacionista. Hum, fale mais sobre isso. Foram abandonadas por decisão da Suprema Corte. Mesmo? E foram abandonadas porque não deram certo? Ou porque foram criadas há mais de 40 anos e, hoje, a distância entre as classes médias branca e negra nos EUA já não é mais tão grande assim? Senhor editorialista, acho que faltou contextualizar melhor. Primeiro, comparar alhos com bugalhos em uma frase tão simples como a sua é complicado. Nos EUA, para começar, não existe vestibular. Os critérios de ingresso na universidade são bem diferentes dos nossos. E embora o país não tenha banido completamente o racismo, há uma presença muito maior de negros em altos cargos públicos e privados, incluindo... o presidente! Que, por sinal, foi beneficiado pelo sistema de cotas quando era estudante. E o debate sobre ações afirmativas nos EUA não se esgotou, como o senhor dá a entender. Na África do Sul, provavelmente o caso mais brutal da história, elas surgiram ao final do regime do apartheid como forma de integrar os negros. Recentemente, migrantes chineses obtiveram o direito de ser incluídos no sistema. Ah tá, preconceito contra os chineses também, agora? Na índia, as castas disputam a tapa o direito de entrar em alguma cota. E isso é necessariamente ruim? De novo, faltou informação. O Brasil republicano, que nunca separou as pessoas pela cor da pele, perdão pela interrupção repentina de novo... Só faltou dizer que não existe racismo no Brasil, hein? Se bem que, de certa maneira, está dito. Senhor editorialista, vou lhe fazer umas perguntinhas: quantos colegas negros você teve na universidade? Os lugares que o senhor frequenta – clubes, restaurantes, hotéis, etc. – são frequentados também por negros? E será mero acaso o fato de 90% ou mais da população das favelas brasileiras ser negra? Nas empresas em que já trabalhou, quantos colegas negros – do mesmo nível hierárquico, ok? – o senhor teve? Como eu já sei as respostas, faço outra pergunta: isso não é separar pessoas pela cor da pele? Pode não estar na lei, pode não ser um regime oficial, mas é velado, está aí, está em textos como o seu, está escondido nesse discurso de que o Brasil é um país tolerante, mestiço, que aceita e trata bem todas as raças. ISSO é o que eu chamo de FALÁCIA. trilha agora esse caminho, em vez de aprender com os erros e acertos de quem já andou por aí e teve de voltar atrás. O erro do Brasil, a meu ver, foi não ter implantado antes políticas sociais – incluindo as raciais – que promovessem a igualdade e a cidadania das minorias. Mas, como se diz por aí, antes tarde do que nunca. E não é por textos preconceituosos como este, caro editorialista da revista Época, que aqueles que acreditam nisso vão desistir. Os movimentos sociais que o senhor tanto despreza, ou mesmo gente que não faz parte de movimento algum, mas que, por algum motivo que o senhor talvez seja incapaz de entender, não está preocupada apenas com o seu próprio umbigo, gente que deseja mudanças e não as teme, que acredita nos direitos humanos e na verdadeira igualdade... essa gente está aí, senhor editorialista, para desconstruir discursos como o seu.
Abaixo o texto na íntegra, sem minhas interrupções.
A ETERNA FALÁCIA DAS COTAS
Editorial da Revista Época de 22 de outubro de 2012
O governo federal planeja anunciar, em novembro, a adoção de cotas para negros no funcionalismo público federal. A cada concurso, um determinado número de vagas será reservado a candidatos de acordo com a cor de sua pele. Eles terão de fazer as provas como todos, mas suas chances serão diferentes. Trata-se de uma consequência do Estatuto da Igualdade Racial, aprovado em 2010, a primeira lei em mais de um século que distingue brasileiros por sua cor.
É inegável que negros sofrem preconceito no Brasil e, por isso, vivem em condições sociais mais desfavoráveis. Não há evidências, porém, de que a garantia de espaço no funcionalismo público ou nas universidades seja uma maneira eficaz de acabar com isso. A política de cotas promete criar apenas mais uma distorção na já ineficiente máquina estatal brasileira.
A justificativa recorrente de “movimentos sociais” para a adoção de políticas de cotas é a necessidade de corrigir a injustiça provocada pelo passado escravocrata brasileiro. É uma visão simplista de uma questão complexa. A genética mostra que o brasileiro é essencialmente mestiço. Brancos têm genes de negros e vice-versa. Acreditar que os negros brasileiros de hoje são descendentes dos escravos é falta de conhecimento. A união de cotas e emprego público formaliza apenas duas compulsões nacionais: por garantir um espaço econômico com menor concorrência e por pendurar-se no Estado. A partir de 1988, a exigência de concursos consolidou um procedimento civilizado para selecionar funcionários. Apesar do ainda elevado número de cargos que podem ser preenchidos por critérios políticos, a maioria dos servidores é escolhida com base no mérito e na competência. Mas o mérito não pegou no Brasil.
Desde o início das discussões sobre cotas, seus defensores buscavam espaço em universidades e empregos públicos. É curioso que se tente privilegiar o ingresso nos dois últimos passos do caminho profissional, em vez de tentar resolver as deficiências crônicas do ensino fundamental e médio - incapaz de garantir a igualdade de oportunidade tão preconizada pelos movimentos sociais. Será que seus integrantes aceitariam trocar as cotas raciais em universidades ou no serviço público por cotas sociais para crianças pobres nas melhores escolas no ensino fundamental ou médio? Se isso ocorresse, as crianças teriam tempo de aprender e, mais tarde, por seu próprio esforço e mérito, disputar vestibulares e concursos públicos sem precisar da garantia de preferência pela cor da pele.
As cotas raciais foram adotadas nos Estados Unidos na década de 1970, como forma de corrigir distorções causadas por 80 anos de política segregacionista. Foram abandonadas por decisão da Suprema Corte. Na África do Sul, provavelmente o caso mais brutal da história, elas surgiram ao final do regime do apartheid como forma de integrar os negros. Recentemente, migrantes chineses obtiveram o direito de ser incluídos no sistema. Na índia, as castas disputam a tapa o direito de entrar em alguma cota. O Brasil republicano, que nunca separou as pessoas pela cor da pele, trilha agora esse caminho, em vez de aprender com os erros e acertos de quem já andou por aí e teve de voltar atrás.